podemos fazer alguns
questionamentos.
Como os falantes reconhecem que
o segmento cantar é uma palavra e que cant ou ar não
o são?
Por que o falante pergunta o
que é cantar, em vez de simplesmente indagar o que é cant,
uma vez que o segmento ar é seu velho conhecido de outros
verbos? Ou então, por que os dicionários dão entradas para sequências como cantar e
não a segmentos como cant ?
Como os falantes reconhecem no
segmento matogrosso mais de uma palavra?
A reflexão em torno das
perguntas anteriores nos ajuda a compreender como se forma o conceito de
palavra no idioma.
Forma significativa
Uma das regras aplicadas ao
reconhecimento de palavras é a de que o segmento deve portar significação. Ou
de outra forma: tem que apresentar função semântica. Assim sendo, o segmento cantar é
aceito como palavra porque, entre outras propriedades, porta um significado.
Alguns podem se opor a essa
regra alegando que no enunciado João e Maria, o conectivo e não
porta significado, mas é considerado palavra em português. Sem dúvida,
palavras como e não portam sentido de maneira semelhante ao
portado por palavras como Maria. Mas os conectivos portam
sentido, sim, porque é o conectivo que agrega a ideia de conjunção ao
enunciado.
Forma livre
Os falantes não perguntam o significado
de cant, provavelmente, porque nunca viram segmentos do mesmo
tipo que cant ocorrerem sem a presença concomitante de um
segmento que o complemente como ar, amos, am,
etc. e por isso consideram que cant sempre deve ser usado
seguido por um complemento, mesmo quando a intenção é buscar o significado do
item no dicionário. A impossibilidade de certos tipos de segmentos ocorrerem
separados uns dos outros é decisiva na formação do conceito de palavra. No
português, temos algumas combinações que só ocorrem simultaneamente e em
ordem definida. Por exemplo:
Raiz + desinência verbal
Cant + ar
Muitos linguistas concordam que
o falante tende a considerar como palavra agrupamentos como os do
exemplo acima, cujas partes não ocorrem separadas. Uma das regras que
se aplica ao reconhecimento de palavras no discurso é a da independência em
relação aos segmentos adjacentes. Em outros termos: a palavra deve ser uma
forma livre. O segmento cant, no português não é livre, pois
sempre aparece no discurso seguido de um complemento conhecido como
desinência. Diz-se que cant é uma forma presa. Presa a outro
tipo de segmento com o qual deve ocorrer simultaneamente.
A exigência de portar
significado e a regra da forma livre sozinhas não delimitam a palavra. O segmento matogrosso,
por exemplo, aparece em vários contextos diferentes e não está preso a nenhum
outro tipo de segmento. É uma forma significativa e livre, mas não é mínima,
pois pode ser separada em dois segmentos menores, mato e grosso,
que, por sua vez, também são formas livres e significativas. Em outras
palavras: matogrosso não é um segmento mínimo.
Temos agora três regras para
delimitar palavras: o segmento deve portar significação, ser uma forma livre
e deve ser mínimo. Muitos linguistas consideram estas condições suficientes
para conceituar palavra. Em português, a maioria das palavras pode ser
reconhecida pela aplicação das três regras, mas há casos especiais, como
veremos em seguida.
O caso especial dos artigos
No português, há uma classe de
palavras, a dos artigos, que merece atenção especial na nossa conceituação de
palavra. Os artigos ocorrem imediatamente prepostos a um substantivo e têm
por função básica determiná-lo ou indeterminá-lo como na série seguinte:
O menino
A menina
Um menino
Uma menina.
Um dos modelos para a
ocorrência de artigos é o seguinte:
Artigo + substantivo.
Em alguns casos, podem ocorrer
adjetivos entre o artigo e o substantivo.
Artigo + adjetivos + substantivo.
Forma mínima
Observando o comportamento dos
artigos no português vemos que se assemelham a um tipo especial de forma
presa: a dos morfemas flexivos, pois só ocorrem seguidos de substantivo, têm
função sintática dedicada e os dois tipos de artigos ocorrem em distribuição
complementar. Os artigos comportam-se tal qual desinências. Considerando o
comportamento sintático dos artigos somos levados a considerá-los forma
presa. No entanto, no português são tratados como palavras, o que contraria a
regra de que palavras são formas livres. Este exemplo mostra que no português
alguns segmentos são tratados como palavras mas não se encaixam na regra da
forma significativa livre mínima. Na seqüência, vamos considerar outro caso
especial: o das preposições.
Preposições são palavras?
As preposições no português têm
comportamentos sintáticos bastante variados, por isso vamos analisar um caso
particular: o da preposição de, quando usada para estabelecer
relação de posse.
Em português dizemos: Livro
de Pedro.
Em latim clássico diz-se: Petrus
liber.
Em inglês diz-se: Peter’s
book.
Em português, o morfema de,
posto entre livro e Pedro, indica relação de posse. Pedro possui o livro.
Em latim clássico, a relação de
posse é estabelecida pela desinência er, que segue a raizlib.
Em inglês, a relação de posse é
estabelecida adicionando o segmento s depois da palavra que
identifica o possuidor.
Como se observa, temos três
soluções diferentes para a mesma necessidade linguística. No latim clássico
não se cogitava em definir o morfema er como palavra, pois nesse
idioma este tipo de ocorrência é classificada como desinência de caso, uma
parte das palavras da classe dos substantivos. Também não ocorre aos ingleses
classificar o segmento s como palavra.
Já em português, a preposição de é
classificada como palavra, embora tenha um comportamento sintático similar ao
dos segmentos er do latim e sdo inglês. A
preposição de, quando usado para estabelecer relação de posse,
tem comportamento sintático típico de desinências.
Prefixos ou formas livres?
Vamos analisar os pares a
seguir:
Reitor/vice-reitor.
Moderno/pós-moderno.
Secretário/sub-secretário.
Homem/super-homem.
Nos exemplos dados, percebemos
que os prefixos vice, pós, sub e super têm
função semântica de modificar o substantivo que precedem. Ou seja,
comportam-se como adjetivos e, no entanto, não são reconhecidos como palavras
em português. A situação aqui é oposta à que acontece com os artigos. Em vez
de serem considerados formas significativas livres mínimas e, portanto,
palavras, certos prefixos derivativos do português são tratados como formas
presas.
Ponderações sobre casos limítrofes
Diante dos casos especiais
citados anteriormente, podemos concluir que no português os casos limítrofes
são delimitados por convenções. Talvez, se outras fossem as circunstâncias, o
morfema de pudesse ser considerado uma desinência de caso e,
então, apareceria ligado a um dos substantivos que conecta. Sob outra
perspectiva, talvez certos prefixos derivativos fossem considerados como
palavras e por aí vai.
Os casos limítrofes do conceito
de palavra se caracterizam pela dificuldade de enquadramento. Podemos
levantar alguns argumentos a favor e contra o padrão do português que
estabelece que artigos e preposições são palavras e que alguns prefixos como vice, pós, sub e super não
são. Vamos citar alguns argumentos a favor, já que argumentos contrários
foram apresentados anteriormente.
A favor dos artigos como
palavra podemos dizer que o uso do artigo é opcional, que se pode
agregá-los ao substantivo ou não. Outra coisa: os artigos são flexionados em
número e gênero, o que é uma característica típica de classes de palavra.
Quando modificamos o substantivo com adjetivos, o artigo é afastado do substantivo
e, isso não é típico de prefixos.
A favor dos prefixos como
morfemas presos podemos dizer que a liberdade do usuário para compor frases
ligando prefixos a substantivos é limitada. Nem toda combinação prefixo +
substantivo é aceitável. Os prefixos não variam em gênero e número.
Em resumo: os casos limítrofes
da delimitação de palavras são resolvidos na estrutura da língua por soluções
convencionais.
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